“Olhando Aarão e todos os filhos de Israel para Moisés, eis que a pele de seu rosto resplandecia; e tinham medo de aproximar-se dele.” (Êxodo 34:30 – Bíblia de Jerusalém)
O texto acima se refere ao episódio que, Moisés, após o êxodo, subiu a montanha com duas tábuas de pedras lavradas, e, retornou ao povo com a glória de seu rosto resplandecente devido a Aliança feita com Deus.
O brilhante artista renascentista, Michelangelo Buonarroti, em uma de suas principais obras, esculpiu o mediador da Antiga Aliança, por encomenda do Papa Júlio II, em 1505. A obra baseou-se no episódio narrado em Êxodo 34:30-35. O Moisés de Michelangelo possui uma característica muito peculiar, um par de chifres como mostrado na figura de sua escultura que se encontra na igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Mas por que os chifres?
Esta história antiga contém duas ocorrências linguísticas incomuns. O verso supracitado e o sequente:
“...e os filhos de Israel viam resplandecer o rosto de Moisés. Depois Moisés colocava o véu sobre a face, até que entrasse para falar com ele.” (Êxodo 34:35 – Bíblia de Jerusalém)
O verbo “קרן” (qaran) significa “brilhar”, “emitir raios” ou “resplandecer” aqui na Bíblia de Jerusalém foi traduzido como “resplandecer”. É uma excelente tradução. Entretanto infelizmente, porque um substantivo cognato tem sua grafia homônima que significa “קרן” (qeren) que se traduz por “chifre”, “trombeta” ou pode significar figuradamente “força” - fazendo alusão aos fortes animais que possuem chifres e usam para a defesa - a Vulgata Latina (Bíblia oficial do Catolicismo) traduziu o termo erradamente como “chifres”, e assim foi que Moisés ganhou um par de chifres na obra do artista medieval. Vejamos:
“videntes autem Aaron et filii Israël “cornutam Mosi faciem” timuerunt prope accedere” (Liber Exodus 34: 30 [http://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina/liber-exodus/34/#.VHMr-NLF_kU])
“qui videbant faciem egredientis “Mosi esse cornutam” sed operiebat rursus ille faciem suam si quando loquebatur ad eos” (Liber Êxodus 34:35 [http://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina/liber-exodus/34/#.VHMr-NLF_kU])
As expressões respectivas “cornutam Mosi faciem” (chifres na face de Moisés [34:30]) e “Mosi esse cornutam” (Moisés e seu chifre [34:35]) são o motivo. É até irônico, porém nos deixa um ensinamento.
Esse pequeno exemplo do “cornutam” (chifres) mostra que transtorno uma tradução errada pode causar. Na hora de vertermos um termo sempre devemos analisar seu contexto. E qual é contexto da passagem? Que Moisés subiu ao monte para falar face-a-face com Deus, recebeu o sinal da Aliança em tábuas de pedra, estava emanando o poder do Senhor. Obviamente não era de “chifres” que o texto original estava se referindo.
Hoje o hebraico possui os sinais massoréticos que auxiliam na tradução. Estes são pontos colocados em cima, ao lado ou em baixo das letras hebraicas, fazendo às vezes das vogais, dando uma diferença fonética no termo. Desta forma ficaria mais fácil identificar a palavra “קרן” (qaran/qeren).
Porém mesmo palavras com seu significado claro, podem possuir um sentido diferente nas passagens da Escritura. É o caso de expressões como pedra, gerar, alma, primogênito, sal, luz, batismo, pão, água, dormir, morrer, etc.
É preciso usar recursos linguísticos e conhecer os gêneros literários. Muitas expressões na Bíblia ganham outras atribuições devido ao seu gênero, seja literal, figurado, irônico, hiperbólico, metafórico, metonímico (subentendido), paradoxal etc. Tudo dependerá do contexto. E, é por causa da analise do contexto que muitas seitas e heresias surgem.
Nos nossos dias nenhuma versão católica moderna grafa o texto desta forma. A Reforma Protestante com sua excelente análise hermenêutico-exegética, e suas traduções para idiomas vernáculos, contribuiu com isso eficazmente promovendo assim versões condignas da Bíblia.
Porém há ainda muitos termos (exemplos acima) que são traduzidos onde desprezam-se toda a conjuntura, não levando em conta uma interpretação histórico-gramatical, a finalidade real do escrito, os contextos paralelos, para com isso obter uma salutar interpretação. E ignorando isso se pode sustentar o que quiser usando a Bíblia, filosofando e arranjando malabarismos teológicos em prol de amparar suas tendências. Já nos tempos dos apóstolos esse procedimento acontecia, e, Pedro fala sobre tais homens (grupos), e o fim que lhes aguarda. Vejamos:
“Considerai a longanimidade de nosso Senhor como a nossa salvação, conforme também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada. Isto mesmo faz ele em todas as suas cartas, ao falar nelas desse tema. É verdade que em suas cartas se encontram alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para a sua própria perdição.” (2 Pedro 3:15-16 – Bíblia de Jerusalém)
Rômulo Lima
(Acadêmico em Teologia e Apologética Aplicada)
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