No século 16, a Reforma Protestante levantou as questões do pelagianismo e do semipelagianismo novamente. A resposta da igreja Católica Romana no Concilio de Trento lança luz sobre o modo como essas questões se desenvolveram. Na sexta sessão do concílio, a igreja definiu a sua doutrina da justificação e registrou cânones contra várias concepções que considerava heréticas. Os primeiros três cânones claramente reiteram o repúdio histórico da igreja ao pelagianismo puro. Os cânones 4 e 5 deixam alguma ambiguidade com relação ao semipelagianismo.
NO CÂNONE 4 DA SEXTA SESSÃO LÊ-SE:
“Se alguém disser que o livre-arbítrio do homem [quando] movido e despertado por Deus, por consentimento ao chamado e ação de Deus, não coopera de forma alguma com respeito ao inclinar-se e preparar-se para obter a graça da justificação, [e] que ele não pode recusar seu consentimento se o desejar, mas que, como algo inanimado, nada faz e é meramente passivo, que seja anátema”.
A ambiguidade aqui é complexa. A primeira declaração é que o homem coopera por meio do consentimento a Deus quando este o move e estimula a vontade. Mas o que significa a vontade ser “movida e despertada por Deus”? A teologia agostiniana afirma que depois que Deus muda a disposição da vontade pela sua graça, o pecador coopera e concorda com a vontade de Deus. Esse consentimento, no entanto, é o resultado da operação monergística de Deus sobre a vontade do pecador escravizado. Os reformadores podem até mesmo concordar que a vontade se dispõe e se prepara para a graça da justificação (não regeneração), mas é improvável que essa linguagem fosse usada por eles. Tal terminologia deixa exposta uma questão crítica perante o semipelagianismo: A vontade, antes da regeneração, sempre se dispõe ou se prepara para a graça?
O concílio adicionou confusão quando negou que a vontade não pode discordar mesmo se quisesse. Essa declaração é estranha porque claramente erra o alvo. Como veremos mais tarde, os reformadores não ensinaram que a graça irresistível de Deus faz com que as pessoas sejam incapazes de discordar mesmo se o quisessem. A obra eficaz de Deus opera de tal forma que o pecador não pode discordar precisamente porque ele não quer discordar. Ele não pode escolher fazer o que não escolhe fazer. A visão agostiniana também não considerava a vontade caída como algo inanimado, embora passiva no momento em que recebe a graça da regeneração.
O teólogo luterano Martin Chemnitz recorre a Jacob Payva Andrada para uma interpretação definitiva desse cânone:
“Ele explica a opinião, tanto do sínodo [ou concílio] quanto a sua própria, assim: Que o livre-arbítrio, sem a inspiração e assistência do Espírito não pode, de fato, causar ações espirituais, mas que isso não acontece por esta razão, que a mente e a vontade, presentes no homem desde o momento do seu nascimento, não tem força alguma, qualquer poder ou faculdades necessárias para começar e efetivar ações espirituais antes da sua conversão porque esses poderes e faculdades naturais, embora não tenham sido destruídos nem extinguidos, foram tão enredados nas armadilhas dos pecados que o homem não pode se desembaraçar pela sua própria força”.
Aqui vemos que o concílio claramente negou o pelagianismo ao afirmar que a pessoa caída não pode fazer bem espiritual sem a assistência da graça. Mas permanece a questão sobre que capacidade moral tem a pessoa não-regenerada para responder à assistência da graça. Chemnitz continua:
“...o Concílio de Trento... diz que o livre-arbítrio consente e coopera livremente com a graça assistente e estimuladora de Deus. Porque eles pensam que na mente e na, vontade do homem não-regenerado ainda há, desde o momento do seu nascimento nessa corrupção, alguns poderes naturalmente implantados, ou algum tipo de faculdade para as coisas divinas ou ações espirituais, mas que o movimento e uso dessas faculdades e poderes é reprimido e impedido pelo pecado no não regenerado. Assim, eles pensam que a graça de Deus e a obra do Espírito não efetuam e trabalham simplesmente naqueles que são nascidos de novo, algum novo poder, força, faculdade ou capacidade de começar e realizar impulsos e ações espirituais que, antes da conversão e renovação, não tinham a partir dos poderes da natureza, mas que eles apenas quebram as cadeias e são libertos das armadilhas para que a faculdade natural, previamente refreada, contida e obstruída, possa, agora, incitada pela graça, exercer seus poderes em questões espirituais.”
Se Chemnitz estiver correto, então Trento reafirmou a condenação da igreja ao pelagianismo e retrocedeu quanto à condenação clara ao semipelagianismo. O concilio adotou essencialmente a visão semipelagiana da vontade e do pecado original.
O CÂNONE 5 DA SEXTA SESSÃO DECLARA:
“Se alguém disser que após o pecado de Adão, o livre-arbítrio foi perdido e destruído, ou que ele é algo apenas em nome, na verdade um nome sem uma realidade, uma ficção introduzida na igreja por Satanás, seja anátema.”
Novamente, é difícil discernir o alvo desse cânone. Agostinho e os reformadores pensavam que o livre-arbítrio do homem não havia sido extinto pela queda. O que foi extinto, de acordo com Agostinho, foi a liberdade, a capacidade moral para o bem.
A resposta de João Calvino ao ensino de Trento é similar à de Chemnitz. Aos três primeiros cânones contrários ao pelagianismo, Calvino simplesmente diz “Amém”. Com relação ao cânone 4, ele escreve:
“Certamente obedecemos a Deus com a nossa vontade, mas é com uma vontade que ele formou em nós. Assim, aqueles que atribuem qualquer movimento apropriado ao livre-arbítrio, à parte da graça de Deus, não mais fazem do que arrancar o Espírito Santo. Paulo declara, não que uma faculdade de vontade foi dada a nós, mas que a própria vontade foi formada em nós (Fp 2.13) e, assim, o consentimento ou obediência à uma vontade justa não vem de ninguém além de Deus. Ele age dentro de nós, sustentando e movendo o nosso coração e nos atraindo pelas inclinações que ele mesmo produziu em nós. Assim diz Agostinho. Que preparo pode haver no coração de ferro até que, por uma mudança maravilhosa, comece a ser um coração de carne?”
As observações de Calvino assumem um tom ainda mais afiado quando responde ao cânone 5:
“Que nós não levantemos uma discussão sobre uma palavra. Mas como por livre-arbítrio eles entendem uma faculdade de escolha perfeitamente livre e sem preconceitos de ambos os lados, aqueles que afirmam que isso é meramente para usar um nome sem uma substância, tem a autoridade de Cristo quando ele diz que livres são aqueles que o Filho liberta e que todos os outros são escravos do pecado. Liberdade e escravidão são com certeza contrários um ao outro. Quanto ao próprio termo, que Agostinho seja ouvido quando afirma que a vontade humana não será livre enquanto estiver sujeita às paixões que a dominam e escravizam. Em outro lugar, ele diz, “Sendo a vontade dominada pela depravação na qual tem caído, a natureza se encontra sem a liberdade”. Novamente, “O homem, ao fazer um mau uso do livre-arbítrio, o perdeu e perdeu a si mesmo”.
Novamente vemos o jogo das palavras liberdade, livre e livre-arbítrio. Em outro lugar, Calvino, assim como Agostinho, admitiu o livre-arbítrio no sentido em que o pecador não age por compulsão exterior. No entanto, a vontade não é livre no sentido moral porque ela é escrava das más inclinações.
Tanto Chemnitz (um luterano) como Calvino viram em Trento um afastamento da concepção sobre a vontade de Agostinho. Eventos posteriores na igreja tendem a confirmar esse julgamento.
O Agostinianismo de Jansen Desenvolvimentos posteriores dentro da igreja Católica Romana no final do século 16 prepararam o caminho para a controvérsia jansenista do século 17. Michael Baius, um professor em Louvain, afirmava decididamente as doutrinas agostinianas da graça. Ele argumentava que o homem é completamente depravado pelo pecado: “O livre-arbítrio sem a assistência de Deus para nada serve a não ser para o pecado”. A justificação é obtida apenas depois da vontade do pecador ter sido transformada por Deus. Setenta e nove teses de Baius foram condenadas numa bula editada pelo papa Pio V. Entre as teses condenadas estavam idéias de Agostinho como:
(1) a vontade sem a graça só pode pecar;
(2) mesmo a concupiscência contrária à vontade é pecado; e
(3) o pecador é movido e avivado apenas por Deus.
O teólogo jesuíta Luis de Molina tentou fazer uma síntese na qual o pelagianismo, o semipelagianismo e o agostinianismo pudessem ser reconciliados. Seeberg resume suas concepções:
“O homem é, mesmo em seu estado pecaminoso, livre para realizar não apenas obras naturais, mas também sobrenaturais, a cooperação da graça sendo pressuposta. A graça eleva e estimula a alma... mas o ato real de decisão não é trabalhado na vontade pela graça, mas é feito pela própria vontade, esta, no entanto, estando em união com a graça... Agora a cooperação profunda assim alcançada se torna uma mera ilusão se todos os atos livres dos seres criados forem realmente reconhecidos, de acordo com os tomistas, como desejados pelo próprio Deus a partir do seu próprio movimento original”.
Com relação à predestinação e eleição, Luis adotou uma visão presciente (baseada na sua teoria do “conhecimento mediano”), de acordo com a qual a eleição de Deus baseia-se no seu conhecimento prévio das livres escolhas humanas. “É verdade, um olho crítico irá prontamente descobrir que a combinação assim aceita é apenas aparente e que a concepção agostiniana-tomista da graça é aqui arrancada pela raiz”, escreve Seeberg. “O sinergismo na sua forma mais ousada é o primeiro princípio confesso dessa teologia. Mas a oposição a ele, inaugurada pelos dominicanos, foi debilitada pela campanha dos jesuítas, que adotaram essa teoria da graça como a doutrina oficial da sua ordem”.
A disputa entre os dominicanos e jesuítas resultou num apelo ao papa. Mas nenhuma declaração papal seria feita para permitir que os jesuítas continuassem ensinando a posição molinista sem oposição eclesiástica.
A influencia crescente dos jesuítas provocou uma forte reação no mosteiro de Port Royal (perto de Paris). Em 1640, pouco antes da sua morte, o bispo de Ypres, Cornelis Jansen, escreveu Augustinus. Nesse volume, Jansen basicamente reproduziu a teologia de Agostinho. Ele insistiu que o pecador é livre apenas dentro do domínio do pecado. Só a graça irresistível pode trabalhar o bem no homem. Os jesuítas reclamaram do livro de Jansen para o papa. Em 1653, Inocêncio X condenou as cinco teses de Jansen:
1) Alguns mandamentos de Deus são impossíveis para os homens “justos” obedecerem pela vontade e pelo esforço de acordo com os poderes que presentemente possuem. Eles também carecem da graça que faria com que essa obediência fosse possível.
2) Aqueles no estado da natureza caída nunca oferecem resistência à graça interior.
3)Para obter mérito ou demérito no estado da natureza caída, o homem não requer liberdade da necessidade. A liberdade da coerção é suficiente.
4) Os semipelagianos admitiram corretamente a necessidade da graça interior para atos individuais, até mesmo para o início da fé. Eles foram heréticos porque afirmaram que o homem pode resistir ou se conformar a essa graça.
5) É semipelagiano dizer que Cristo morreu ou derramou o seu sangue por todo e qualquer homem.
O agostinianismo foi novamente revivido na igreja por Pasquier Quesnel. No século 18, ele publicou o seu Meditations upon the New Testament. Essa obra, mais uma vez, incitou os jesuítas, que conseguiram assegurar a condenação das 101 teses desse comentário. “Com uma honestidade tremenda, não apenas a teologia agostiniana, mas toda a estrutura do Cristianismo agostiniano foi aqui condenado”, escreve Seeberg.
“É herético ensinar: que o homem natural é apenas pecador; que a fé é dom de Deus; que a graça é dada apenas mediante a fé; que a fé é a primeira graça... que a graça é necessária para toda boa obra...”
Blaise Pascal acendeu uma faísca sobre a causa jansenista ao escrever uma série de artigos contra os jesuítas. Mas, mesmo os esforços de Pascal não detiveram o movimento da igreja para longe do curso que Agostinho havia estabelecido séculos antes.
O SEMIPELAGIANISMO NO CATECISMO
No novo Catecismo da Igreja Católica (1994), muitos artigos tratam da liberdade e da responsabilidade humana. Alguns desses artigos incluem o que se segue:
“A liberdade é o poder, arraigado na razão e na vontade, de agir ou não agir, fazer isto ou aquilo, e assim realizar ações deliberadas sob a própria responsabilidade da pessoa. A pessoa modela sua própria vida pelo livre-arbítrio. A liberdade humana é uma força para o crescimento e a maturidade na verdade e na bondade; ela alcança a sua perfeição quando dirigida a Deus... Enquanto a liberdade não se vincular definitivamente ao seu bem final que é Deus, há a possibilidade de se escolher entre o bem e o mal e, conseqüentemente, crescer na perfeição ou falhar e pecar. Essa liberdade caracteriza propriamente os atos humanos. É a base para o louvor ou culpa, mérito ou reprovação.”
As palavras acima revelam a visão semipelagiana segundo a qual o homem caído retém a capacidade moral de escolher entre o bem e o mal. Em outro lugar, o Catecismo declara:
“Deus criou o homem um ser racional, conferindo a ele a dignidade de uma pessoa que pode iniciar e controlar suas próprias ações. ‘Deus desejou que o homem fosse “deixado nas mãos do seu próprio conselho”, para que pudesse, de acordo com si mesmo, buscar seu Criador e livremente alcançar sua completa e abençoada perfeição pelo ato de apegar-se a ele”.
Com relação ao pecado original, o Catecismo observa que a igreja rejeitou tanto a visão pelagiana quanto a protestante. Os reformadores, diz o Catecismo, “ensinaram que o pecado original perverteu radicalmente o homem e destruiu a sua liberdade; eles identificaram o pecado herdado por cada homem com a tendência para o mal (concupiscentia), o que seria insuperável”.
De modo diferente de Agostinho e dos reformadores, Roma não considera essa inclinação ao mal como insuperável. Ela pode ser superada por meio de um empenho no que o Catecismo chama de “uma batalha difícil”.
Toda a história do homem tem sido a história de um sério combate com os poderes do mal, assim nosso Senhor nos diz, desde o próprio início da História até o último dia. Ao se encontrar no meio do campo de batalha, o homem tem de lutar para fazer o que é certo, isso a um grande custo para si mesmo, e é ajudado pela graça de Deus que obtém o sucesso em alcançar a sua própria integridade interior”.
Resumindo, Roma claramente continua a repudiar o pelagianismo puro e a ensinar que o homem precisa da assistência da graça divina para a salvação. Contudo, Roma também ensina que o homem caído retém a capacidade (embora sua vontade tenha sido enfraquecida) para cooperar com essa graça assistente, exercendo a vontade no seu poder natural. Isso representa o triunfo do semipelagianismo sobre o agostinianismo.
Por R.C. Sproul
Rômulo Lima
(Acadêmico em Teologia e Apologética Aplicada)
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