domingo, 24 de janeiro de 2021

JESUS DESCEU AO INFERNO?

 


“... no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão...”
 (1 Pedro 3:19)

 

Está sendo muito comum um entendimento nas igrejas modernas, difundido em pregações, ensinado por “teólogos” e “exegetas” que Cristo, após a sua morte, desceu ao inferno para pregar o Evangelho da salvação aos mortos que não tiveram oportunidade de ouvir ainda em vida; e, tomar as chaves da morte e do inferno das mãos de Satanás. Os “estudiosos” que afirmam tal teoria, usam o verso supracitado como apoio as suas ideias.

Como em certo seminário, o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé delatou: “Ninguém diz nada, hoje, que não tenha sido dito anteriormente e muito melhor.” A razão é que os pensamentos apenas tornam a aparecer. Tudo que conhecemos hoje são apenas elaborações de ideias de outrora.

A teoria bíblica em estudo, aparentemente nova, surgiu no Egito com Clemente de Alexandria, no início do século II. Até a morte do último apóstolo, João, e dos primeiros pais apostólicos Inácio, Policarpo e Clemente de Roma (que conviveram diretamente com os apóstolos de Cristo), esse pensamento não era difundido.

No decorrer da história da teologia, dois outros nomes agregaram mais ideias ao pensamento de Clemente de Alexandria, o Cardeal Roberto Belarmino, no século VI, que defendeu a ideia que tem sido defendida por muitos católicos romanos: Cristo, em espírito, foi libertar as almas dos justos que se arrependeram antes do dilúvio e que tinham ficado num estado intermediário (limbo e purgatório). E, o teólogo alemão Frederich Spitta, nos fins do século XIX, ensinou que, depois de sua morte e antes de sua ressurreição, Cristo pregou aos anjos caídos, também conhecidos como “filhos de Deus”.

Tais teorias geram questões que aflige diretamente muitas outras partes da Bíblia, e ensinos claramente expostos. Apesar de sua brevidade, as interpretações que o texto levanta são muitas e, dependendo do posicionamento crido, traça-se uma linha muito tênue entre cristianismo e sectarismo. Além do mais, as teorias levantam questões, como salientou o saudoso R. C. Sproul, renomado apologista cristão, ao dizer que a passagem provoca uma série de perguntas preliminares:


“Que espírito está em foco: o espírito humano ou o Espírito Santo? Quem são esses espíritos em prisão? O que essa prisão indica e onde fica? Quando essa pregação aconteceu? Por que essa pregação foi necessária?”[1]


Cada uma dessas perguntas tem respostas diferentes segundo diferentes estudiosos da Bíblia. Os pregadores de hoje não respondem essas perguntas, apenas afirmam com base em 1º Pedro 3:19, desconsiderando o restante das Escrituras. 

Vejamos alguns dos posicionamentos que o texto tomou na história do pensamento cristão e quais problemáticas que a posição de Clemente, Belarmino e Spitta nos leva.

 

O PENSAMENTO DE CLEMENTE, BELARMINO E SPITTA:

Ensinavam basicamente que Cristo, entre a sua morte e ressurreição, foi ao inferno, pregou aos espíritos em prisão; ou pregou a anjos caídos; ou a pessoas que estavam numa espécie de estado intermediário.

A posição de Clemente, especificamente, surgiu de um documento extrabíblico, do século II, a saber, o Credo dos Apóstolos. Como é sabido por todo estudioso cristão, o Credo Apostólico, é atribuído pela tradição aos doze apóstolos[2], justamente por causa dos textos mais antigos que possuem doze versos. Porém, os estudiosos acreditam que ele se desenvolveu a partir de pequenas confissões batismais empregadas nas igrejas dos primeiros séculos[3]. Esse credo só tomou a forma que conhecemos hoje no decorrer dos anos, mais especificamente no Concílio de Niceia quando recebeu seu título, e tornou-se a versão que conhecemos. Em alguns dos seus versos, referente a pessoa de Cristo, ele traz:

 

“et in Iesum Christum, Filium Eius unicum, Dominum nostrum,

qui conceptus est de Spiritu Sancto, natus ex Maria Virgine,

passus sub Pontio Pilato, crucifixus, mortuus, et sepultus,

descendit ad inferos, tertia die resurrexit a mortuis,”

 

As versões latinas mais tardias trazem: “descendit ad inferos” que é a tradução do grego para o latim. A palavra “ínferos” é o termo grego “hades” que pode ser traduzido como mansão dos mortos, sepultura, etc. É bem provável que Clemente teve contato com as versões desse credo, em sua época, chegando então às conclusões que chegou do texto de 1ª  Pedro 3:19.

O problema do pensamento já inicia com a palavra espíritos. Se os espíritos forem de homens, a Bíblia é enfática em ensinar que a salvação deve ser alcançada em vida, não tendo possibilidade de se encontra-la depois da morte física, como o escritor de Hebreus descreve:

 

E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo...

(Hebreus 9:27)

 

O Senhor Jesus vai mais além ao ensinar na passagem do Rico e do Lázaro que:


Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós.
(Lucas 16:25-26)


Essa história contada por Jesus é clara em dizer que após a morte, o estado da alma é irreversível. Não se pode retornar ao mundo dos vivos; não se pode atravessar para o seio de Abraão; e, o sofrimento é interminável. 

Humanamente falando, a visão da salvação após a morte é muito agradável, confortadora e até “amorosa”, mas confronta-se diretamente com o Evangelho pregado por Cristo e por seus apóstolos, anulando a justiça de Deus, tornando a visão de salvação bíblica em uma heresia chamada de UNIVERSALISMO onde todos serão salvos, mesmo após a morte. A bíblia nunca promete salvação para todos os seres humanos.

Seitas como a Igreja Católica Romana e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons), creem respectivamente em purgatório (lugar onde se expia pegados antes de ir para o céu); e, pregação para mortos, salvação para mortos que não aceitam o evangelho e até batismo para os mortos. Essas crenças são heréticas, e devem ser rechaçadas da Verdadeira Igreja Cristã.  

A outra problemática é: se os espíritos em prisão são anjos caídos, Pedro se contradiz ao dizer que os anjos que pecaram estão reservados para o juízo; e, ainda contradiz Judas, o irmão do Senhor, em sua epístola que também afirma isso:

 

Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo;
(2 Pedro 2:4)  

 

...e a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia;
(Judas 1:6)

 

ONDE JESUS ESTAVA ENTRE A SUA MORTE E RESSURREIÇÃO?

A Escritura Sagrada ensina claramente onde Jesus estava depois de crucificado, até o momento da sua ressurreição. Ele estava ao lado do Pai, aguardando a ação do Espírito Santo em ressuscitá-lo.  Os evangelistas Mateus e Lucas relatam:

 

E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.
Mateus 27:50

 

Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou.
(Lucas 23:46)

 

Lucas ainda é mais detalhista ao narrar à promessa que o Senhor Jesus fez a um dos ladrões crucificados ao seu lado, quando registra:

 

“Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.
(Lucas 23:43)

 

Erroneamente alguns tentam argumentar que Cristo entregou o espírito a Deus, e “outro espírito” (talvez o Espírito Santo) foi pregar no inferno. Ora isso não é dito em lugar nenhum. Antes da encarnação, Cristo era apenas espírito e quando o Espírito Santo encheu o ventre de Maria, Cristo se fez carne juntamente com o espírito que possuía antes da existência humana. O Espírito Santo está em Cristo, mas não é Cristo. Ele é outra Pessoa diferente da Pessoa de Cristo. Essa teoria do “outro espírito” fere o pilar do cristianismo que é a DOUTRINA DA TRINDADE: um único Deus eternamente subsistente em três Pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.

O Espírito Santo não é Jesus! Jesus foi cheio do Espírito Santo e tinha uma relação ímpar com essa Pessoa da divindade, pois compartilham da mesma essência divina, sendo pessoas diferentes. Porém, o Espírito Santo não é a Pessoa de Cristo. Essa confusão é dada justamente porque uma das designações do Espírito Santo é o Espírito de Cristo. Mas o Espírito Santo também é chamado de Espírito de Deus, sem ser a Pessoa do Pai.  

Essas afirmativas corroboram claramente com os ensinos bíblicos, sem entrar em contradições. Deus não pode se contradizer em sua Palavra, senão, não seria Deus. Sua Palavra não seria isenta de erros, e se um texto estiver errado, muitos outros poderão estar.

 

E AS CHAVES DA MORTE E DO INFERNO?

Os defensores da posição de Clemente, também buscam no texto de João, ao escrever as profecias de Apocalipse, amparo para defender que Jesus foi ao inferno, quando o apóstolo narra a visão do Cristo Glorioso:

 

“...e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno.
(Apocalipse 1:18)  

 

A grande problemática aqui é que Satanás não tem poder de condenar ninguém, e muito menos lançar as almas da pessoa no inferno. Satanás será fustigado também no inferno. Ele não será um carrasco que assolará as almas, mas sim um espírito que ficará em tormentos e dores. Deus tem o poder sobre o inferno, e quando o texto joanino descreve Cristo com as chaves da morte e do inferno, aponta para sua supremacia sobre tudo e todos no universo, sendo o Deus Salvador, e, o Deus que cumprirá a justiça na vida das pessoas. O Senhor Jesus mesmo afirma quem devemos temer e o porquê temer:

 

“Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer: temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno. Sim, digo-vos, a esse deveis temer.
(Lucas 12:5)

 

Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo.
(Mateus 10:28)

 

Paulo, ao condenar os imorais da igreja de Corinto, ensina que a limitação do poder de Satanás se estende apenas a vida física do ser humano. Tudo que Satanás pode fazer é matar a carne do homem e desviar a sua conduta. Ele não tem poder de levar ninguém ao suplício eterno:

 

“Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja,
em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor,
entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor [Jesus].
(1 Coríntios 5:3-5)

 

 

AS INTERPRETAÇÕES MAIS COERENTES

AGOSTINHO DE HIPONA - SÉCULO IV:

O grande Teólogo Agostinho de Hipona rebateu a posição de Clemente de Alexandria e apontou seus erros doutrinários ao afirmar que não pode haver salvação depois da morte. Segundo sua posição (por volta de 400 d.C) é afirmado que o Cristo preexistente proclamou a salvação por intermédio de Noé ao povo que viveu antes do dilúvio, seguindo o texto do verso seguinte:

 

...os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água,
(1 Pedro 3:20)

  

Como bem observou Agostinho, a geração de Noé ouviu o Evangelho de Deus, por meio do patriarca, pois o próprio Pedro declara sobre Noé:

 

“...e não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé, PREGADOR DA JUSTIÇA, e mais sete pessoas, quando fez vir o dilúvio sobre o mundo de ímpios;
(2 Pedro 2:5)

 

A passagem nos mostra que a geração de Noé ouviu sua pregação, porém, rejeitou a mensagem de Deus por meio do patriarca. Diante disso o pensamento agostiniano pode ser assim sintetizado:

 

“Por meio de (Espírito Santo), ele (Cristo), foi e pregou (por meio de Noé) aos espíritos (agora) em prisão (no Hades)”.

 

 Dessa forma o teólogo entedia o texto, sendo esta uma posição que não contradiz o ensino ortodoxo. Um defensor dessa posição é o teólogo contemporâneo Drº Augustus Nicodemus Lopes, Pós-doutorado em teologia do Novo Testamento.


VISÃO REFORMADA CONTEMPORÂNEA: 

Três grandes comentaristas contemporâneos, a saber: Hernandes Dias Lopes, Simon J, Fistemaker e Francis Schaeffer ensinam que o Cristo ressurreto, quando ascendeu aos céus, proclamou aos espíritos em prisão sua vitória sobre a morte. O Cristo exaltado passou pelo reino onde são mantidos os anjos caídos e proclamou seu triunfo sobre eles. Essa teoria encontra amparo nos escritos paulinos onde é dito que os anjos caídos habitam as regiões celestes:

 

...porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.
(Efésios 6:12)

 

Uma ilustração sobre o pensamento é como uma casa de dois andares. O primeiro é o andar onde vivemos. Aqui é o mundo visível. O segundo andar, as regiões celestes, é o mundo espiritual invisível, onde estão os seres angelicais. Cristo proclamou sua vitória aos seres angelicais nessas regiões celestes.

Essa interpretação encontra reações favoráveis nos meios das igrejas protestantes mais alinhadas com a Reforma e não entra em contradição com os ensinamentos do restante das Escrituras.

 

CONCLUSÃO

Vemos como a Bíblia é um livro que deve ser interpretado à luz de seus contextos e dos ensinos gerais do Cristianismo Histórico. Fora isso, uma passagem com apenas nove palavras, no grego (dez na versão Almeida Revista e Atualizada) pode trazer um bojo de erros e heresias, criando até falsas religiões que se dizem cristãs, levando muitos à perdição. Outra questão é que devemos ter muito cuidado com pregadores modernos e "pseudoteólogos" que apregoam tais ideias dizendo que possuem uma interpretação certa ou uma nova revelação. Apartai-vos destes.

 

Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema.
(Gálatas 1:8)


 

Romulo Lima

 


[1] Sproul, R. C. 1-2 Peter, p. 125.

[2] Alguns chegaram a sugerir que cada apóstolo teria contribuído com um artigo.

[3] Extraído do livro de Humberto Casanova e Jeff Stam, El Credo Apostólico (Grand Rapids, Libros Desafio, 1998), pp. 14-22.


8 comentários:

  1. Muito esclarecedor, com muita base em conhecimento!!

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    1. Sempre bom ajudar aqueles que possuem certas dúvidas. Estamos juntos 🤜🏽🤛🏽

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  2. Jesus resgatou as almas dos bons e justos que estavam no compartimento dos santos no Hades e levou para o céu as almas.

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  3. Jesus resgatou as almas dos bons e justos que estavam no compartimento dos santos no Hades e levou para o céu as almas.

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  4. Jesus antes da criação era espírito e divino e era um só e se manifestava assim quando ele encarnou passou a ser espírito, corpo, divino e humano e continuava sendo um só, então se o espírito e a divindade de Jesus fosse exatamente igual ao de antes da criação ele não poderia se tornar carne pois tanto ante s da criação quanto no momento que Jesus se tornou carne havia uma complexa interação que sustentava a manifestação de Jesus por isso houve santa variação no espírito e na divindade de Jesus. Jesus é atualmente alma que é humana e divina e corpo que é humano e divino.

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  5. Como se explica a ressurreição daqueles que estavam no Hades, quando Jesus foi pregar aos espíritos em prisão ?

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  6. Acho que o Hades é embaixo do planeta terra pois se o Hades é na terra então a alma imaterial ficaria cercada de terra.

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  7. Agora eu mesmo fiquei sem entender pois a alma sendo imaterial como ela ficaria embaixo na terra que é algo material? Se o Hades é um lugar espiritual e se ele fica embaixo do planeta Terra ele está dentro do Universo e aí seria algo material.

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