domingo, 31 de janeiro de 2021

DAVI, UM BASTARDO NA CASA DE JESSÉ?

Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe.

(Salmos 51:5)

 

Segundo a teoria de alguns eisegetas (interpretes que inserem seus conceitos particulares ao texto), o rei Davi não era filho biológico de Jessé. Para um leitor e conhecedor da Bíblia, isso soa muito estranho, pois em diversos textos é dito que Jessé é pai de Davi como irei demonstrar no decorrer do estudo.

Um exemplo de defensor desta teoria é o “pastor” Marco Feliciano, que em uma de suas pregações alega que a mãe de Davi foi estuprada por um escravo europeu, dando a luz a uma criança totalmente diferente dos seus irmãos. E, com isso posto, passa interpretar o verso do Salmo 51:5. Vejam que é um conceito que ele cria, e leva até o texto bíblico. Ele não retira do texto o que o autor quis expressar, mas insere sua ideia. Como podemos ver no trecho deste vídeo:



Em primeiro lugar iremos tratar da alegação de que Jessé comprou um escravo europeu e, este estuprou sua mulher, gerando assim Davi, que por sua vez tornou-se um bastardo. De acordo com o livro de Deuteronômio, era inaceitável pela Lei mosaica que filhos ilegítimos tivessem lugar na assembleia de Israel:


Nenhum bastardo entrará na assembleia do Senhor; nem ainda a sua décima geração entrará nela. (Deuteronômio 23:2).


Aqui já vemos uma das impossibilidades de que Davi tenha sido gerado de outra pessoa, pois os israelitas, bem antes dos tempos de Jessé, repudiavam filhos nessa condição. Isso se reflete nos tempos dos juízes, com Jefté, que foi expulso da casa de seu pai por ser bastardo:


“Também a mulher de Gileade lhe deu filhos, os quais, quando já grandes, expulsaram Jefté e lhe disseram: Não herdarás em casa de nosso pai, porque és filho doutra mulher.(Juízes 11:2).


Em segundo lugar a profecia de Isaias – o chamado profeta Messiânico -, sobre a vinda do Senhor Jesus. O profeta diz que surgirá do tronco um renovo, ou seja, um ramo que todos os gentios esperarão. Isaias fala claramente que da linhagem sanguínea, alguém da mesma natureza surgiria para o bem dos povos da terra:


Naquele dia, recorrerão às nações à raiz de Jessé que está posta por estandarte dos povos; a glória lhe será a morada. Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo.” (Isaías 11:10-11).  


Jesus, como homem, tinha que ser da linhagem sanguínea de Jessé, e, consequentemente de Davi. Se este não fosse filho daquele, a profecia seria vã, pois Jesus pertenceria à linhagem de um escravo europeu e um renovo desse escravo, e não de Jessé. Tal texto é tão esplêndido que o apostolo Paulo traz sua importância para o mundo e, a aplicação em Jesus, das palavras do profeta:

 

Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar os gentios; nele os gentios esperarão. (Romanos 15:12).

 

Em terceiro lugar seria a diferença física de Davi para com seus irmãos. Esse ponto é o mais frágil, pois a Bíblia mostra que, até irmãos gêmeos, podem possuir diferenças físicas marcantes. São os chamados gêmeos dizigóticos ou bivitelinos. O livro de Gêneses nos mostra os filhos de Isaque nesta condição:


Saiu o primeiro, ruivo, todo revestido de pelo; por isso, lhe chamaram Esaú.
Depois, nasceu o irmão; segurava com a mão o calcanhar de Esaú; por isso, lhe chamaram Jacó. Era Isaque de sessenta anos, quando Rebeca lhos deu à luz.
(Gênesis 25:25-26).

 

A diferença entre os gêmeos era marcante que, até o pai, após a velhice e já cego, conseguia perceber. Este foi o questionamento de Jacó para com sua mãe na questão da benção da primogenitura:

 

Disse Jacó a Rebeca, sua mãe: Esaú, meu irmão, é homem cabeludo, e eu, homem liso. (Gênesis 27:11).

 

Em quarto lugar, tendo como gancho a argumentação anterior, há a questão de que os israelitas possuem uma linhagem bem hibrida. A genética do povo não é segregada, isolada. O próprio Jessé e, logicamente Davi, possuíam estrangeiros bem próximos deles na árvore genealógica, a saber, Raabe de Jericó (antes da chegada dos judeus) e Rute, uma moabita:

 

Salmom gerou de Raabe a Boaz; este, de Rute, gerou a Obede; e Obede, a Jessé; Jessé gerou ao rei Davi...” (Mateus 1:5-6a).

 

E já aproveitando o texto do evangelista Mateus, vamos para a quinta colocação que está sobre a palavra GEROU, do grego εγεννησεν (egennesen), de onde vem a palavra GÊNESIS, que pode ser traduzida como ORIGEM. Isso nos mostra que, a origem, a gênese de Davi é Jessé, como vários e vários textos explanam:

 

Obede gerou a Jessé, e Jessé gerou a Davi.” (Rute 4:22).


Jessé gerou a Eliabe, seu primogênito, a Abinadabe, o segundo, a Simeia, o terceiro, a Natanael, o quarto, a Radai, o quinto, a Ozém, o sexto, e a Davi, o sétimo. (1º Crônicas 2:13-15).

 

Existem muitos outros, porém irei parar por aqui e apresentarei o sexto argumento com base no texto de 1º Crônicas. Vemos que claramente o verso diz “... e a Davi, o sétimo”. Na cultura judaica, muito diferente da nossa, onde os filhos caçulas são tratados com todo cuidado, geralmente sendo servidos pelos outros irmãos, os israelitas tinham-nos como os de menor expressão dentro da família. O primogênito era o que dava ordens no lugar do pai, administrava os bens, e, tinha até maior parte na refeição e herança. O mais novo não. Este era o que mais trabalhava e servia os demais. Era o caso de Davi, que apascentava os rebanhos de seu pai, quando o profeta Samuel foi vista-los, e todos estavam preparados para recebê-lo, menos o mais novo, pois, tinha de trabalhar.  

 

A INTERPRETAÇÃO DO SALMO

João Calvino, um verdadeiro exegeta (interprete que retira ao máximo o que autor quis dizer no texto), ao interpretar o salmo 51:5, foi muito feliz ao explicar que Davi estava indo muito além do pecado carnal que cometera, mas que a passagem se referia a sua herança pecaminosa de Adão que ele (Davi) recebeu como ser humano:

 

Ele agora avança para além do mero reconhecimento de um ou de muitos pecados, confessando que nada trouxera consigo em sua entrada no mundo senão pecado, e que sua natureza era inteiramente depravado”[1]

 

E, isso corrobora com os ensinos ortodoxos e com a contextualização de muitos outros poemas de lamento. O próprio Davi em outro lugar declara:

 

Desviam-se os ímpios desde a sua concepção...” (Salmos 58:3a)

 

Que é o homem, para que seja puro? E o que nasce de mulher, para ser justo? (Jó 15:14)

   

Todos os seres humanos são nascidos debaixo desse pecado herdado, e, mesmo um bebê vindo ao mundo, carece da graça de Deus e de sua misericórdia, por ser nascido meramente pela carne. Foi isso o que o salmista quis dizer no texto. Independente da idade que tenhamos, somos pecadores:

 

O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3:6).

 

CONCLUSÃO

O entendimento lógico que tenho, como teólogo e pesquisador, observando os pregadores modernos, é que estes homens possuem uma extrema necessidade de se mostrar espiritualidade. Quererem trazer novas interpretações e supostas revelações, dizendo-se cheios do Espírito. Tentam encantar os fieis vendo e citando coisas que ninguém mais viu: nem Deus, nem seus profetas, e, nem seus autores. São interpretações subjetivas, que não refletem concepções teológicas corretas, desconhecendo a Bíblia e o cristianismo ortodoxo.

Triste é que são pregadores como esses que possuem suas igrejas lotadas e ministérios riquíssimos. Infectam o povo de heresias e erros que negam claramente a Palavra de Deus.

 

Rômulo Lima

 

PS: A afirmação do “pastor” sobre o escravo europeu. Não quis me voltar para as questões históricas da formação geopolítica do continente e do fato de que todo região era pertencente ao continente asiático. Ele apenas expressou uma ideia moderna de etnia europeia. Um estereótipo do homem branco em contraste com o restante do mundo. O que não refletia a realidade da época de Davi.         



[1] CALVINO, João – Série Comentários Bíblicos, vol. 2 – Editora Fiel. 

domingo, 24 de janeiro de 2021

JESUS DESCEU AO INFERNO?

 


“... no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão...”
 (1 Pedro 3:19)

 

Está sendo muito comum um entendimento nas igrejas modernas, difundido em pregações, ensinado por “teólogos” e “exegetas” que Cristo, após a sua morte, desceu ao inferno para pregar o Evangelho da salvação aos mortos que não tiveram oportunidade de ouvir ainda em vida; e, tomar as chaves da morte e do inferno das mãos de Satanás. Os “estudiosos” que afirmam tal teoria, usam o verso supracitado como apoio as suas ideias.

Como em certo seminário, o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé delatou: “Ninguém diz nada, hoje, que não tenha sido dito anteriormente e muito melhor.” A razão é que os pensamentos apenas tornam a aparecer. Tudo que conhecemos hoje são apenas elaborações de ideias de outrora.

A teoria bíblica em estudo, aparentemente nova, surgiu no Egito com Clemente de Alexandria, no início do século II. Até a morte do último apóstolo, João, e dos primeiros pais apostólicos Inácio, Policarpo e Clemente de Roma (que conviveram diretamente com os apóstolos de Cristo), esse pensamento não era difundido.

No decorrer da história da teologia, dois outros nomes agregaram mais ideias ao pensamento de Clemente de Alexandria, o Cardeal Roberto Belarmino, no século VI, que defendeu a ideia que tem sido defendida por muitos católicos romanos: Cristo, em espírito, foi libertar as almas dos justos que se arrependeram antes do dilúvio e que tinham ficado num estado intermediário (limbo e purgatório). E, o teólogo alemão Frederich Spitta, nos fins do século XIX, ensinou que, depois de sua morte e antes de sua ressurreição, Cristo pregou aos anjos caídos, também conhecidos como “filhos de Deus”.

Tais teorias geram questões que aflige diretamente muitas outras partes da Bíblia, e ensinos claramente expostos. Apesar de sua brevidade, as interpretações que o texto levanta são muitas e, dependendo do posicionamento crido, traça-se uma linha muito tênue entre cristianismo e sectarismo. Além do mais, as teorias levantam questões, como salientou o saudoso R. C. Sproul, renomado apologista cristão, ao dizer que a passagem provoca uma série de perguntas preliminares:


“Que espírito está em foco: o espírito humano ou o Espírito Santo? Quem são esses espíritos em prisão? O que essa prisão indica e onde fica? Quando essa pregação aconteceu? Por que essa pregação foi necessária?”[1]


Cada uma dessas perguntas tem respostas diferentes segundo diferentes estudiosos da Bíblia. Os pregadores de hoje não respondem essas perguntas, apenas afirmam com base em 1º Pedro 3:19, desconsiderando o restante das Escrituras. 

Vejamos alguns dos posicionamentos que o texto tomou na história do pensamento cristão e quais problemáticas que a posição de Clemente, Belarmino e Spitta nos leva.

 

O PENSAMENTO DE CLEMENTE, BELARMINO E SPITTA:

Ensinavam basicamente que Cristo, entre a sua morte e ressurreição, foi ao inferno, pregou aos espíritos em prisão; ou pregou a anjos caídos; ou a pessoas que estavam numa espécie de estado intermediário.

A posição de Clemente, especificamente, surgiu de um documento extrabíblico, do século II, a saber, o Credo dos Apóstolos. Como é sabido por todo estudioso cristão, o Credo Apostólico, é atribuído pela tradição aos doze apóstolos[2], justamente por causa dos textos mais antigos que possuem doze versos. Porém, os estudiosos acreditam que ele se desenvolveu a partir de pequenas confissões batismais empregadas nas igrejas dos primeiros séculos[3]. Esse credo só tomou a forma que conhecemos hoje no decorrer dos anos, mais especificamente no Concílio de Niceia quando recebeu seu título, e tornou-se a versão que conhecemos. Em alguns dos seus versos, referente a pessoa de Cristo, ele traz:

 

“et in Iesum Christum, Filium Eius unicum, Dominum nostrum,

qui conceptus est de Spiritu Sancto, natus ex Maria Virgine,

passus sub Pontio Pilato, crucifixus, mortuus, et sepultus,

descendit ad inferos, tertia die resurrexit a mortuis,”

 

As versões latinas mais tardias trazem: “descendit ad inferos” que é a tradução do grego para o latim. A palavra “ínferos” é o termo grego “hades” que pode ser traduzido como mansão dos mortos, sepultura, etc. É bem provável que Clemente teve contato com as versões desse credo, em sua época, chegando então às conclusões que chegou do texto de 1ª  Pedro 3:19.

O problema do pensamento já inicia com a palavra espíritos. Se os espíritos forem de homens, a Bíblia é enfática em ensinar que a salvação deve ser alcançada em vida, não tendo possibilidade de se encontra-la depois da morte física, como o escritor de Hebreus descreve:

 

E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo...

(Hebreus 9:27)

 

O Senhor Jesus vai mais além ao ensinar na passagem do Rico e do Lázaro que:


Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós.
(Lucas 16:25-26)


Essa história contada por Jesus é clara em dizer que após a morte, o estado da alma é irreversível. Não se pode retornar ao mundo dos vivos; não se pode atravessar para o seio de Abraão; e, o sofrimento é interminável. 

Humanamente falando, a visão da salvação após a morte é muito agradável, confortadora e até “amorosa”, mas confronta-se diretamente com o Evangelho pregado por Cristo e por seus apóstolos, anulando a justiça de Deus, tornando a visão de salvação bíblica em uma heresia chamada de UNIVERSALISMO onde todos serão salvos, mesmo após a morte. A bíblia nunca promete salvação para todos os seres humanos.

Seitas como a Igreja Católica Romana e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons), creem respectivamente em purgatório (lugar onde se expia pegados antes de ir para o céu); e, pregação para mortos, salvação para mortos que não aceitam o evangelho e até batismo para os mortos. Essas crenças são heréticas, e devem ser rechaçadas da Verdadeira Igreja Cristã.  

A outra problemática é: se os espíritos em prisão são anjos caídos, Pedro se contradiz ao dizer que os anjos que pecaram estão reservados para o juízo; e, ainda contradiz Judas, o irmão do Senhor, em sua epístola que também afirma isso:

 

Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo;
(2 Pedro 2:4)  

 

...e a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia;
(Judas 1:6)

 

ONDE JESUS ESTAVA ENTRE A SUA MORTE E RESSURREIÇÃO?

A Escritura Sagrada ensina claramente onde Jesus estava depois de crucificado, até o momento da sua ressurreição. Ele estava ao lado do Pai, aguardando a ação do Espírito Santo em ressuscitá-lo.  Os evangelistas Mateus e Lucas relatam:

 

E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.
Mateus 27:50

 

Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou.
(Lucas 23:46)

 

Lucas ainda é mais detalhista ao narrar à promessa que o Senhor Jesus fez a um dos ladrões crucificados ao seu lado, quando registra:

 

“Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.
(Lucas 23:43)

 

Erroneamente alguns tentam argumentar que Cristo entregou o espírito a Deus, e “outro espírito” (talvez o Espírito Santo) foi pregar no inferno. Ora isso não é dito em lugar nenhum. Antes da encarnação, Cristo era apenas espírito e quando o Espírito Santo encheu o ventre de Maria, Cristo se fez carne juntamente com o espírito que possuía antes da existência humana. O Espírito Santo está em Cristo, mas não é Cristo. Ele é outra Pessoa diferente da Pessoa de Cristo. Essa teoria do “outro espírito” fere o pilar do cristianismo que é a DOUTRINA DA TRINDADE: um único Deus eternamente subsistente em três Pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.

O Espírito Santo não é Jesus! Jesus foi cheio do Espírito Santo e tinha uma relação ímpar com essa Pessoa da divindade, pois compartilham da mesma essência divina, sendo pessoas diferentes. Porém, o Espírito Santo não é a Pessoa de Cristo. Essa confusão é dada justamente porque uma das designações do Espírito Santo é o Espírito de Cristo. Mas o Espírito Santo também é chamado de Espírito de Deus, sem ser a Pessoa do Pai.  

Essas afirmativas corroboram claramente com os ensinos bíblicos, sem entrar em contradições. Deus não pode se contradizer em sua Palavra, senão, não seria Deus. Sua Palavra não seria isenta de erros, e se um texto estiver errado, muitos outros poderão estar.

 

E AS CHAVES DA MORTE E DO INFERNO?

Os defensores da posição de Clemente, também buscam no texto de João, ao escrever as profecias de Apocalipse, amparo para defender que Jesus foi ao inferno, quando o apóstolo narra a visão do Cristo Glorioso:

 

“...e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno.
(Apocalipse 1:18)  

 

A grande problemática aqui é que Satanás não tem poder de condenar ninguém, e muito menos lançar as almas da pessoa no inferno. Satanás será fustigado também no inferno. Ele não será um carrasco que assolará as almas, mas sim um espírito que ficará em tormentos e dores. Deus tem o poder sobre o inferno, e quando o texto joanino descreve Cristo com as chaves da morte e do inferno, aponta para sua supremacia sobre tudo e todos no universo, sendo o Deus Salvador, e, o Deus que cumprirá a justiça na vida das pessoas. O Senhor Jesus mesmo afirma quem devemos temer e o porquê temer:

 

“Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer: temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno. Sim, digo-vos, a esse deveis temer.
(Lucas 12:5)

 

Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo.
(Mateus 10:28)

 

Paulo, ao condenar os imorais da igreja de Corinto, ensina que a limitação do poder de Satanás se estende apenas a vida física do ser humano. Tudo que Satanás pode fazer é matar a carne do homem e desviar a sua conduta. Ele não tem poder de levar ninguém ao suplício eterno:

 

“Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja,
em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor,
entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor [Jesus].
(1 Coríntios 5:3-5)

 

 

AS INTERPRETAÇÕES MAIS COERENTES

AGOSTINHO DE HIPONA - SÉCULO IV:

O grande Teólogo Agostinho de Hipona rebateu a posição de Clemente de Alexandria e apontou seus erros doutrinários ao afirmar que não pode haver salvação depois da morte. Segundo sua posição (por volta de 400 d.C) é afirmado que o Cristo preexistente proclamou a salvação por intermédio de Noé ao povo que viveu antes do dilúvio, seguindo o texto do verso seguinte:

 

...os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água,
(1 Pedro 3:20)

  

Como bem observou Agostinho, a geração de Noé ouviu o Evangelho de Deus, por meio do patriarca, pois o próprio Pedro declara sobre Noé:

 

“...e não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé, PREGADOR DA JUSTIÇA, e mais sete pessoas, quando fez vir o dilúvio sobre o mundo de ímpios;
(2 Pedro 2:5)

 

A passagem nos mostra que a geração de Noé ouviu sua pregação, porém, rejeitou a mensagem de Deus por meio do patriarca. Diante disso o pensamento agostiniano pode ser assim sintetizado:

 

“Por meio de (Espírito Santo), ele (Cristo), foi e pregou (por meio de Noé) aos espíritos (agora) em prisão (no Hades)”.

 

 Dessa forma o teólogo entedia o texto, sendo esta uma posição que não contradiz o ensino ortodoxo. Um defensor dessa posição é o teólogo contemporâneo Drº Augustus Nicodemus Lopes, Pós-doutorado em teologia do Novo Testamento.


VISÃO REFORMADA CONTEMPORÂNEA: 

Três grandes comentaristas contemporâneos, a saber: Hernandes Dias Lopes, Simon J, Fistemaker e Francis Schaeffer ensinam que o Cristo ressurreto, quando ascendeu aos céus, proclamou aos espíritos em prisão sua vitória sobre a morte. O Cristo exaltado passou pelo reino onde são mantidos os anjos caídos e proclamou seu triunfo sobre eles. Essa teoria encontra amparo nos escritos paulinos onde é dito que os anjos caídos habitam as regiões celestes:

 

...porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.
(Efésios 6:12)

 

Uma ilustração sobre o pensamento é como uma casa de dois andares. O primeiro é o andar onde vivemos. Aqui é o mundo visível. O segundo andar, as regiões celestes, é o mundo espiritual invisível, onde estão os seres angelicais. Cristo proclamou sua vitória aos seres angelicais nessas regiões celestes.

Essa interpretação encontra reações favoráveis nos meios das igrejas protestantes mais alinhadas com a Reforma e não entra em contradição com os ensinamentos do restante das Escrituras.

 

CONCLUSÃO

Vemos como a Bíblia é um livro que deve ser interpretado à luz de seus contextos e dos ensinos gerais do Cristianismo Histórico. Fora isso, uma passagem com apenas nove palavras, no grego (dez na versão Almeida Revista e Atualizada) pode trazer um bojo de erros e heresias, criando até falsas religiões que se dizem cristãs, levando muitos à perdição. Outra questão é que devemos ter muito cuidado com pregadores modernos e "pseudoteólogos" que apregoam tais ideias dizendo que possuem uma interpretação certa ou uma nova revelação. Apartai-vos destes.

 

Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema.
(Gálatas 1:8)


 

Romulo Lima

 


[1] Sproul, R. C. 1-2 Peter, p. 125.

[2] Alguns chegaram a sugerir que cada apóstolo teria contribuído com um artigo.

[3] Extraído do livro de Humberto Casanova e Jeff Stam, El Credo Apostólico (Grand Rapids, Libros Desafio, 1998), pp. 14-22.